Livores
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Quando morremos o nosso cheiro desaparece connosco. Aquele cheiro caraterístico de cada um de nós, que é uma mistura da nossa componente biológica e hábitos. E a memória olfativa é uma das mais poderosas, as pessoas que nos amaram pensarão nesse cheiro, mas nunca mais o poderão cheirar.
É sempre triste quando uma coisa desaparece deste mundo, ainda mais quando não deixa provas da sua existência...
Vi o filme "Wit" no outro dia e foi, sem sombra de dúvidas dos melhores filmes que já tive o prazer de ver. Daqueles que quando se vê se gosta mas depois, passados uns dias, ao relembrar, ainda se aprecia mais. Quem vir, de certo que integrará o poema abaixo como parte da sua alma... Recomendo!
Death, be not proud, though some have called thee
Mighty and dreadful, for thou art not so;
For those whom thou thinkst thou dost overthrow
Die not, poor Death, nor yet canst thou kill me.
From rest and sleep, which but thy pictures be
Much pleasure; then from thee much more must flow
And soonest our best men with thee do go
Rest of their bones and soul's delivery.
Thou art slave to Fate, Chance, kings, and desperate men,
And dost with poison, war, and sickness dwell,
And poppies or charms can make us sleep as well
And better than thy stroke. Why swellst thou then?
One short sleep past, we wake eternally,
And death shall be no more; Death, thou shalt die!
John Donne
Pela primeira vez desde a noite da morte do Charley não consigo dormir.
Ainda hoje dizia ao Paulo como mal me deitava na cama adormecia, e dormia tão confortável. Estou aqui deitada há mais de uma hora, a tentar afastar-me destes pensamentos, mas por mais que tente não consigo. Recordo o penúltimo dia do Charley, a minha mãe foi visitá-lo e ele correu até ela a abanar a cauda, energético, feliz por a ver, a veterinária disse que ficaria mais um dia para observação e que se tudo corresse bem continuaria o tratamento em casa. No dia seguinte, tudo mudara, Charley já não se levantava, estava frio e foi colocado por baixo de uma lâmpada. Um choque devastador, após a esperança do dia anterior, a minha mãe disse que ele iria morrer. Passado umas horas, após tomar banho, implorei aos céus para o salvarem e enchi-me de novo de crenças e expectativas. Mal saio da casa de banho a minha mãe entra em casa, "Saíram? Onde foram?", "Buscar o Charley.", "Morreu?", "Sim.". Caiu-me o coração aos pés.
Hoje, enquanto estudava microbiologia, sempre qe lia "vírus" lembrava-me dele. Nisto, aproximando-se a meia noite, mandei uma mensagem de boa noite à minha mãe no facebook e ela diz-me que a Blacky tá internada. Entro imediatamente em hiperventilação, agarro no telemóvel, saio da sala de estudo e ligo-lhe. Não me consigo controlar, sei que estou a ser irracional, que a sobrevivência de cães adultos às parvoviroses são elevadas e que ela, ao contrário do Charley, está numa fase precoce da infecção e que tudo ficará bem, mas as lágrimas escorriam e o pânico apoderava-se de mim.
Dito isto, RIP Charley, you were loved despite having had such a small life. E nada mais tenho a acrescentar, porque todas as minhas outras meninas são fortes.
Sleep, little angel.
O Noivado do Sepulcro
Soares de Passos
Vai alta a lua! na mansão da morte
Já meia-noite com vagar soou;
Que paz tranquila; dos vaivéns da sorte
Só tem descanso quem ali baixou.
Que paz tranquila!... mas eis longe, ao longe
Funérea campa com fragor rangeu;
Branco fantasma semelhante a um monge,
D'entre os sepulcros a cabeça ergueu.
Ergueu-se, ergueu-se!... na amplidão celeste
Campeia a lua com sinistra luz;
O vento geme no feral cipreste,
O mocho pia na marmórea cruz.
Ergueu-se, ergueu-se!... com sombrio espanto
Olhou em roda... não achou ninguém...
Por entre as campas, arrastando o manto,
Com lentos passos caminhou além.
Chegando perto duma cruz alçada,
Que entre ciprestes alvejava ao fim,
Parou, sentou-se e com a voz magoada
Os ecos tristes acordou assim:
"Mulher formosa, que adorei na vida,
"E que na tumba não cessei d'amar,
"Por que atraiçoas, desleal, mentida,
"O amor eterno que te ouvi jurar?
"Amor! engano que na campa finda,
"Que a morte despe da ilusão falaz:
"Quem d'entre os vivos se lembrara ainda
"Do pobre morto que na terra jaz?
"Abandonado neste chão repousa
"Há já três dias, e não vens aqui...
"Ai, quão pesada me tem sido a lousa
"Sobre este peito que bateu por ti!
"Ai, quão pesada me tem sido!" e em meio,
A fronte exausta lhe pendeu na mão,
E entre soluços arrancou do seio
Fundo suspiro de cruel paixão.
"Talvez que rindo dos protestos nossos,
"Gozes com outro d'infernal prazer;
"E o olvido cobrirá meus ossos
"Na fria terra sem vingança ter!
– "Oh nunca, nunca!" de saudade infinda
Responde um eco suspirando além...
– "Oh nunca, nunca!" repetiu ainda
Formosa virgem que em seus braços tem.
Cobrem-lhe as formas divinas, airosas,
Longas roupagens de nevada cor;
Singela c'roa de virgínias rosas
Lhe cerca a fronte dum mortal palor.
"Não, não perdeste meu amor jurado:
"Vês este peito? reina a morte aqui...
"É já sem forças, ai de mim, gelado,
"Mas inda pulsa com amor por ti.
"Feliz que pude acompanhar-te ao fundo
"Da sepultura, sucumbindo à dor:
"Deixei a vida... que importava o mundo,
"O mundo em trevas sem a luz do amor?
"Saudosa ao longe vês no céu a lua?
– "Oh vejo sim... recordação fatal!
– "Foi à luz dela que jurei ser tua
"Durante a vida, e na mansão final.
"Oh vem! se nunca te cingi ao peito,
"Hoje o sepulcro nos reúne enfim...
"Quero o repouso de teu frio leito,
"Quero-te unido para sempre a mim!"
E ao som dos pios do cantor funéreo,
E à luz da lua de sinistro alvor,
Junto ao cruzeiro, sepulcral mistério
Foi celebrada, d'infeliz amor.
Quando risonho despontava o dia,
Já desse drama nada havia então,
Mais que uma tumba funeral vazia,
Quebrada a lousa por ignota mão.
Porém mais tarde, quando foi volvido
Das sepulturas o gelado pó,
Dois esqueletos, um ao outro unido,
Foram achados num sepulcro só.
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